Salgado, o fotógrafo da África perdida " África " do fotojornalista Sebastião Salgado é um murro na alma, um livro que consegue ainda surpreender os nossos olhos tão viciados que estão na catadupa de imagens que invadem o nosso quotidiano. É também o carimbo que autentica a vitalidade do fotojornalismo de referência, no tempo em que num ápice de 5 anos a fotografia digital e toda ferramenta que permite uma nova linguagem multimédia, pareciam condenar o preto-e-branco como a última sessão fotográfica. Conheci o Sebastião Salgado em Fátima no ano de 1979. Ao meu lado apareceu um fotógrafo estrangeiro, de ar cansado e que começou a comentar como era louco um velhote com as pernas entrapadas que teimava em iniciar de joelhos mais uma dolorosa promessa. O António Pedro Ferreira, outro fotógrafo peregrino, reconheceu-o logo como sendo o Sebastião Salgado. Na época ele ainda não era muito conhecido, tinha iniciado a carreira de fotógrafo em 1975, em Angola, fotografando a aventura portuguesa na hora da descolonização. Mandara às urtigas uma profissão respeitável de economista e descobrira que a fotografia era o meio ideal para mostrar ao Mundo a saga do sofrimento humano. As suas fotos tinham sido publicadas na Photo e no Paris-Match, que eu me lembre, e tinham-me marcado pela capacidade de testemunharem momentos únicos, aliando o olhar jornalístico, ao apuro técnico, a sensibilidade social ao rigor estético. Sempre me intrigou, e hoje de novo ao ver o " África " onde estão também essas fotos, como é que um fotógrafo sem experiência já conseguia enquadrar de uma forma tão rigorosa e com um carácter tão forte. Só os mestres o conseguem com muita maturidade mas ele já alinhava na grelha de partida em primeiro para aquela que acabaria por ser uma carreira fulgurante. Em Fátima, no dia seguinte pela manhã voltei a encontrá-lo, sempre com o António Pedro Ferreira ao lado, e ele acabou por confessar (o lugar prestava-se a isso!) que tinha adormecido na véspera no quarto do hotel, depois de um jantar reconfortante falhando assim as fotografias da Procissão das Velas. Eu já contei esta história mas gosto de a repetir porque ela desmistifica a ideia de que os grandes repórteres são infalíveis. Não são. Falar das fotografias do Sebastião Salgado é redundante. Elas falam, dizem, explicam, sugerem, escondem, denunciam, por si, a visão grandiosa do fotojornalista-autor. Interessante é o método de Salgado para concretizar as suas reportagens. Trabalha com uma equipa reduzida. A mulher, arquitecta, dá-lhe apoio na produção, no design que transporta as fotografias. Depois conta com mais duas ou três pessoas num pequeno apartamento em Paris. Por detrás das suas imagens uma ideia, um projecto, uma produção, um fim. Salgado não fotografa à solta, não dispara sem objectivo. Por isso as suas fotografias demoram anos a fazer, editar, imprimir, mostrar. Durante muitos anos o fotógrafo trabalhou nas agências Sygma e Gamma e mais tarde foi membro da Magnum. Para ter fundo de maneio para poder realizar muitas das fotografias que agora aparecem no " África ", trabalhava nove meses em Paris a fazer conselhos de ministros, política, faits-divers, para poder financiar os seus projectos especiais a preto-e-branco com cariz de autor, durante os restantes três meses do ano. O trabalho mais bem pago como fotojornalista foram as fotografias que fez por mero acaso do atentado a Ronald Reagen. A revista Time tinha-lhe pedido para seguir o Presidente durante um mês, ele fê-lo com alguma contrariedade e acabou por estar no sítio certo, à hora exacta, no instante decisivo. Havia mais dois fotógrafos a seu lado, um deles da Associated Press que fez fotos muito melhores, mais nítidas e mais perto, do que as dele, mas Salgado conseguiu mesmo assim com a venda dessas imagens, um pouco tremidas, comprar um pequeno apartamento em Paris. A obra de Salgado supera muito do que tem sido em geral nos últimos 30 anos a fotografia documental. Não há outro fotógrafo na arte de testemunhar com uma tão extensa foto-galeria. Mas se o público enche aos milhares as suas exposições e corre a comprar os seus foto-álbuns, há uma elite da fotografia que questiona o sucesso comercial assente no testemunho da tragédia alheia, mesmo que haja no seu discurso visual e falado uma obsessão de esquerda pelo estado das coisas e pelos desígnios da Humanidade. É um fotógrafo que ainda atravessa o tempo da película para o digital, que permanece um artesão, e que está angustiado porque duvida conseguir no mercado a tempo película a preto e branco para poder acabar o seu novo projecto. Com " África " regressamos ao tempo perdido e com Salgado revivemos o melhor que há na essência do fotojornalismo documental. Luiz Carvalho, fotojornalista do Expresso