"ATAQUES GRÁFICOS CONTRA O IMPÉRIO Iansã Negrão e Flanie Ziéme Pacifistas protestam com tinta vermelha atirada na logomarca de instituições americanas e inglesa, em Salvador (BA) ........................................... A terça-feira em Salvador amanheceu diferente. As logomarcas nos totens dos bancos de Boston e Citibank, Clube Banco dos Ingleses e lanchonete McDonalds estavam manchadas de sangue. Pelo menos é o que parecia numa olhada rápida. O primeiro pensamento: mais uma onda de protestos atingiu os símbolos dos impérios britânico e americano. É vermelho, embora não seja sangue. Mas a imagem é tão forte quanto: sobre o verdinho do BankBoston, escorria uma gosmenta tinta vermelha impregnada, difícil de limpar. "Só outro, algum transeunte pode ter balbuciado na ida para o ponto de ônibus de mais uma segunda-feira, dessa vez surpreendente e politizada. A mensagem é assim: "Estamos devolvendo simbolicamente o sangue derramado às empresas que representam entre nós o predomínio do Império, as quais serão consideradas cúmplices deste projeto macabro até que tomem publicamente posição contra (1). E veio de um coletivo organizado e anônimo de "cidadãos de boa índole indignados com essa nova fase do imperialismo, com o nome de " Operação Sangue Quente. Gente pacífica, mas não passiva. A inspiração veio das ruas: há três semanas, um outdoor do McDonald's na Avenida Jorge Amado havia recebido uma interferência gráfica. Estava lá em cima da mensagem publicitária da promoção McNight (sanduíches mais baratos durante a madrugada) um texto em tinta neon: "Lixo dos EUA. Não financie a guerra. Boicote os produtos americanos. É o que está todo mundo fazendo, não é? Então eles decidiram ir além: um ataque cromático em emblemas do " Império. Bombas de tinta seriam o arsenal bélico usado no atentado. Foram 20 pessoas no planejamento. Oito partiram para o ataque. Foi na madrugada de segunda para terça-feira, entre 3 e 4 horas, cronometradas, aproveitando a calmaria das ruas do primeiro dia da semana. Duas "viaturas de ataque com quatro ativistas cada e um carro de cobertura. Eles se definem: "São três gerações de homens e mulheres desobedientes civis e militares com diferentes graus de envolvimento em questões e ações sociais. O mais novo 20, o mais velho 59. "Não deixe seu sangue esfriar, proteste é só o começo. Ainda que o efeito vermelho das bombas tenha sido efêmero, a adrenalina continua em alta. SANGUE QUENTE - Pelo menos a ocupação sinistra de Bush no Iraque serviu para mobilizar os glóbulos vermelhos de muita gente. O grupo da " Operação Sangue Quente garante: "O sangue não vai esfriar tão cedo. Eles estão em alerta. A idéia é que outras intervenções surpreendam os cidadãos soteropolitanos, autoridades e o que estiver no alvo dos "guerreiros. O incômodo com questões sociais não se bastará com o fim da guerra. Para eles, a pulsão coletiva capaz de intervenções plástico-ideológicas na cidade são mais poderosas, por exemplo, do que a maioria das caminhadas em favor da paz, que costumam atrair toda a mídia local. O símbolo universal da paz, a pomba branca, aparece na logomarca da " Operação Sangue Quente bicando a cabeça de uma ave, que lembra o cruzamento de um urubu com uma águia: uma remissão às forças armadas norte-americanas sendo detonada por uma força que, embora pareça inofensiva, é propositiva, intervém. "Nessa ação específica, queríamos atingir os cidadãos médios, para que eles associassem os alvos com o capital que financia a guerra, explicam. Agora, qualquer questão, a qualquer momento, em qualquer lugar poderá ser o próximo alvo do fervilhar sanguíneo dos coligados anônimos da " Operação Sangue Quente. Motivos por aqui não faltam. Mas o grupo ambiciona mais: quer instigar os cidadãos a ações semelhantes. Ou, no mínimo a um exercício de pensamento. Um dia desses uma estátua de gente importante pode aparecer ensacada (como fizeram os três artistas do grupo "3Nós3, no início da década de 80, tempos em que São Paulo amanhecia mais surpreendente) ou algo do gênero. Permanecer no anonimato é, segundo dizem, muito mais uma questão ligada à estratégia do que ao temor de autoridades. Ou da confusão que estas fazem quando não distinguem vândalos de manifestantes. Numa guerra sem armas de fogo, o anonimato pode ser a melhor estratégia. AÇÃO ENTRE AMIGOS - O plano foi discutido, a estratégia de ação muito bem pensada. Reuniões de cúpula na Toca dos Carcarás - nome dado ao local que abrigou os latinos de sangue quente - levantavam questões ideológicas e operacionais. Mapa do itinerário pronto, tinta fresca na bagagem. Alguns, tomados pela "síndrome do amarelismo, abortaram antes do ataque. "Melhor assim, disseram alguns. Aquela madrugada pertenceu ao deserto. No céu cinza, uma semi-lua era a única em vigília. O clima era protetor porque não tinha olhos, mas a calma das ruas sem gente provocava uma sensação de vulnerabilidade. O medo veio porque havia também outras viaturas: policiais federais e militares estavam em atividade. A primeira bomba que atingiu o Citibank da Rua Miguel Calmon, no Comércio, e que deveria ser silenciosa como planejado fez um estrondo alto. Pernas bambas titubearam. Sorte a ronda da Polícia Federal que estava na área ter mais o que fazer naquele momento. Da mesma forma com os homens da viatura da Polícia Militar ocupados em espancar dois homens em outra esquina e nada viram. Uma prostituta entretia a guarda de outra viatura na Manoel Dias e o coletivo pôde agir sem problemas no BankBoston, último banco-alvo da ação. Enquanto cumpriam a missão, um advogado aguardava o pior, preparado. Eles alegariam protesto e desobediência civil, mas por estar dentro de uma ação política integrada, provavelmente seriam enquadrados em crime de vandalismo e formação de quadrilha. O plantão insone foi dispensado quando todos se reencontraram ainda com bombas armadas-não detonadas e com todos os alvos atingidos. Aliviados, alguém do grupo levantou o fato de nenhum deles nunca ter participado de uma ação clandestina. Só naquele momento, eles avaliaram o perigo de uma bala ter sido disparada ou um policial ter perseguido os carros. As moças acharam melhor não irem direto para casa: voltaram à cena do crime como boas criminosas para fotografar e flagrar dois vigias e dois cães, todos de guarda dormindo relaxados, bem de frente para a fachada iluminada do Citibank da Barra, tingida de tinta ainda quente. (1) Esta matéria foi escrita com base em relatos dos participantes que preferiram não se identificar. 16 de abril de 2003 Fontes: Centro de Mídia Independente (www.midiaindependente.org). Jornal A Tarde (www.atarde.com.br).