Antônio Houaiss: influências e afinidades no seu labor lingüístico-filológico (Evanildo Bechara UERJ/ UFF) Vem-se, a pouco e pouco, compondo o quadro da história das idéias e das atividades dos lingüistas, filólogos e gramáticos brasileiros. A partir de um primeiro e fragmentário levantamento, por falta de informações, de José Leite de Vasconcelos, e do bem mais circunstanciado Breve retrospecto sobre o ensino da Língua Portuguesa, redigido por Maximino Maciel em novembro de 1910 e que vem como apêndice à sua Gramática Descritiva, vem-se avolumando, em vários centros universitários brasileiros, a pesquisa de informações sobre o tema, de modo que, dentro de pouco, já se pode elaborar um manual bastante rico e informativo sobre essas idéias e atividades. Circunscrevendo-se, pela facilidade de informações diretas, ao que se vem fazendo no Rio de Janeiro, cabe menção a um ou dois capítulos da 1.ª série dos Estudos Filológicos de Antenor Nascentes, saídos em 1939, e, mais recentemente, os levantamentos de Sílvio Elia, nos Ensaios de Filologia e Lingüística. Depois de um primeiro momento de visão panorâmica, surgem os estudos especiais de autor: M. Said Ali (de Evanildo Bechara), J. Mattoso Câmara Jr. (de Carlos Eduardo Falcão Uchôa), Clóvis Monteiro (de Jayr Calhau), Olmar Guterres da Silveira (de Horácio Rolim de Freitas), o exaustivo estudo sobre Sousa da Silveira (de Maximiano de Carvalho e Silva), sem contar as análises percucientes de Joaquim Mattoso Câmara Jr. acerca da obra de M. Said Ali e João Ribeiro, reunidos nos Dispersos. Só para a referência de uma importante contribuição de São Paulo (USP - 1998), cabe menção a recente tese de livre-docência de Valter Kehdi A Morfologia e a Sintaxe Portuguesas na Obra de J. Mattoso Câmara Jr. Em linhas gerais, depois que os estudos lingüísticos no Brasil se puderam beneficiar da contribuição mais moderna da Europa e da América, traçam-se cinco gerações de representantes bem delineadas das quais só trataremos das três primeiras, porque na última delas se inserem a atividade e a produção de Antônio Houaiss, sobre quem queremos hoje vos falar. Na primeira, inserem-se, entre outros, M. Said Ali, João Ribeiro, Pacheco da Silva Júnior, Maximino Maciel. Uma segunda, com Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, José Oiticica, Clóvis Monteiro; uma terceira, com J. Mattoso Câmara Jr., Serafim da Silva Neto, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo, Celso Cunha, Antônio Houaiss. Antônio Houaiss, nascido no Rio de Janeiro a 15 de outubro de 1915 e, nesta mesma cidade, falecido a 7 de março de 1999, conheceu um amplo quadro de atividades como filólogo, diplomata, político, acadêmico, enciclopedista, dicionarista, bibliólogo, ensaísta, crítico literário, teórico da literatura, tradutor, jornalista, perito em gastronomia: numa palavra, um humanista. Um universo tão multifacetado quanto este permite a execução de um livro de macroscopia de vida, como esse dedicado, com muita justiça, aos 80 anos de Antônio Houaiss, cuja trajetória triunfal pode ser resumida nesse título feliz do depoimento do diplomata e musicólogo Vasco Mariz: um processo administrativo-ideológico. É o que foi a vida de Houaiss: nada se fez de improviso ou por acaso. Operário disciplinado, cada degrau de sua ascensão era impulsionado pela força do seu projeto ideológico de bem servir a quem dele precisasse, e, na ponta última desse projeto, bem servir a seu país. Mas de toda esta trajetória, de todo esse processo administrativo-ideológico nos dão conta os estudos e depoimentos sobre o homem e sobre suas obras enfeixados na miscelânea em honra aos 80 anos de Houaiss. Temos aí um retrato de corpo inteiro levantado na visão macroscópica do objeto estudado. Todavia, é hora de descermos às minúncias e de percorrer as estradas vicinais que vão desembocar na grande avenida, na grande estrada percorrida pelos ilustres colaboradores de Uma Vida. E esses fragmentos, aparentemente desinteressantes e desprovidos de valor, nos permitem juntar certos dados menores para melhor conhecer o gigante retratado Antônio Houaiss. Sinto-me em condições favoráveis para fazer esse exercício de crítica construtiva na reunião de alguns dados fragmentários que julgo importantes para uma visão aprofundada do nosso Houaiss, porque convivi - para pouca alegria e regozijo meu - porque convivi, repito, pouco com ele, se por convivência queremos aludir à proximidade da presença física. Permanentemente estava eu com Houaiss na sua produção lingüístico-filológica refletida e plasmada nos seus livros, nos seus artigos, nas suas conferências. E, como éramos joeiradores da mesma seara, percebia com mais nitidez as afinidades com suas fontes de formação e informações, percebendo suas ligações intelectuais mais próximas - percebendo ou supondo perceber -, ainda que se manifestassem, quase sempre, mais elaboradas e mais contundentes do que suas fontes originais, detectava matrizes que honravam os mestres e dignificavam o discípulo. Nessa pesquisa de recolher as peças soltas para compor o quadro definitivo, há questões que se impõem pela sua curiosidade. Uma delas, por exemplo, está na opção de Houaiss de matricular-se, na Faculdade Nacional de Filosofia, no Curso de Letras Clássicas, para licenciar-se em disciplinas, como Grego e o Latim, disciplinas que durante toda a sua vida de produção científica não ocuparam o lugar que normalmente seria esperado. É certo que Houaiss lecionou Latim, ao lado da Língua Portuguesa; é certo também que o conhecimento dos idiomas clássicos esteve na raiz de seu trabalho lexicográfico, dicionarístico e enciclopédístico, mas não tivemos o nosso homenageado a editar textos de grego e latim ou a tratar especificamente de questões de língua ou de literatura clássicas. Um interessante episódio de sua vida, narrada por Maximiano de Carvalho e Silva no livro sobre Sousa da Silveira, revela-nos o quanto já estudava e conhecia de latim, mesmo antes de ingressar na Faculdade. Abrira a Prefeitura do Distrito Federal, em 1936, concurso para preenchimento de uma vaga de Português no seu quadro de magistério. Inscreveram-se 23 candidatos, entre os quais Antônio Houaiss. Ponto sorteado: a ortografia portuguesa e seus fundamentos históricos. Na comissão examinadora estavam Sousa da Silveira (presidente), Daltro Santos e Marieta Castagnino da Mota. Corrigidas as provas, foram selecionados 6 candidatos, e de um sétimo, porque escrevera mais de trinta péginas sobre ortografia latina; se pensou em não aprová-lo, sob o pretexto de ter fugido do assunto. Aí interveio em favor do candidato o presidente Sousa da Silveira, argumentando que, quem escreveu tanto sobre ortografia latina, se lhe sobrasse tempo, teria feito outra boa exposição acerca da ortografia portuguesa e seus fundamentos históricos. E assim foram 7 os candidatos aprovados, tendo alcançado o 1.º lugar no concurso o nosso saudoso Sílvio Elia. Pensando no tema e conversando com pessoas bem informadas, podemos propor umas tantas razões da matrícula nesse Curso de Letras Clássicas. Mas são meras conjecturas, uma vez que Houaiss, segundo me parece, nunca o explicitou, nem clara nem implicitamente. A primeira proposta aponta a influência de seu professor Ernesto Faria na Escola Amaro Cavalcanti, onde concluiu seu curso de perito-contador. Como sabemos, Ernesto Faria foi excelente professor de latim, entusiasta do ensino clássico, autor de livros na suas especialidade e um grande propagandista do magistério do latim entre seus alunos, quer no curso secundário, quer no curso superior. Mas há duas fortes objeções a essa primeira tentativa de explicação: Houaiss freqüentou uma escola pública secundária no tempo em que ela atraía verdadeiros mestres de nível universitário, e na Amaro Cavalcanti Houaiss tivera professores dessa estirpe, como Clóvis Monteiro e Mattoso Câmara Jr., que, a prevalecer e explicação por influência de seus mestres, melhor o iriam levar a matricular-se no Curso de Letras Neolatinas. A segunda objeção é que à turma de Houaiss na FNF pertenciam Celso Cunha e Olavo Nascentes, que não tinham podido sofrer a influência de Ernesto Faria na Escola Amaro Cavalcanti. Como Houaiss, Celso Cunha também não se dedicou especificamente à pesquisa e à produção na área clássica, a competir com sua importante elaboração de obras no domínio da Língua Portuguesa. Olavo Nascentes, filho de nosso mestre e saudoso amigo Antenor Nascentes, excetuando a tradução da Gramática Latina do notável lingüista e filólogo chileno Rodolfo Oroz, também nada produziu relativo ao grego e ao latim. À semelhança de Houaiss e Celso, sua participação nessa área limitou-se ao magistério do latim. Não custa lembrar que, por essa fase inicial da FNF, e antes dela, na Universidade do Distrito Federal (UDF), brilhavam nela os nomes de Sousa da Silveira, José Oiticica e Antenor Nascentes, que, sem dúvida, constituiriam mais uma razão para que Houaiss, Celso e Olavo fizessem o Curso de Letras Neolatinas. Outra plausível explicação para a matrícula em Letras Clássicas se deve ao fato de se tratar de um curso de largo e profundo prestígio cultural dentro das universidades do mundo inteiro e por um aspecto especial de nele, àquela época inicial dos estudos superiores no Brasil, contar com uma plêiade de mestres europeus, de renome internacional, que vieram ao Brasil, convidados por Afrânio Peixoto em nome do nosso Governo, para lançar as raízes nessa área de estudos universitários: Jean Bourciez, Jacques Perret, Eugène Albertini, Georges Millardet. Por aí se vê o que de interessante comportam as indagações dessas pequenas facetas, dessa análise microscópica necessária e importante para se fixarem, com maior detalhe, os traços do retrato de corpo inteiro de um talento como Antônio Houaiss, e mesmo de boa parte da história cultural dos intelectuais e artistas do Brasil. Neste exercício de investigação microscópica das vertentes e fontes que impulsionaram Antônio Houaiss, ao largo de sua atividade como lingüista e filólogo - atividade desdobrada no labor lexicográfico, dicionarístico, enciclopédico, ecdótico e de crítica literária -, além, está claro, de seus dotes natos e inclinações pessoais, desejo agora trazer à luz e à consideração dos meus benévolos ouvintes a figura de José Oiticica que, dentre a trindade que reinava na fase inicial de nossos cursos superiores de letras, poderia ser o menos indicado para, à primeira vista, estabelecer tantos pontos de contacto com Houaiss. E, quiçá, não só pontos de contactos, mas evidentes afinidades, que não se devem reduzir, a meu ver, ao plano do ideal político, pois que, neste aspecto, por informação do irmão Maurício Houaiss, este ideal deriva da influência do Professor Pascoal Leme que "tinha "idéias" que logo o apaixonaram, acrescidas do influxo de um colega seu pouco mais velho, Reinaldo Machado, cujo pai, José Alves Machado, foi por longo tempo mestre de ambos em matéria de anarquismo"1. Sílvio Elia, na sua contribuição ao livro acima citado, levanta a ponta desta afinidade a que me refiro, mas, como não era propósito seu, ficou apenas no seguinte pormenor: "Foi nessa oportunidade que três amigos seus [de Houaiss], que também haviam participado e sido aprovados no referido concurso [para preencher vagas de Professor da antiga Prefeitura do Distrito Federal, em 1935], Rocha Lima, Matos Peixoto e o autor destas linhas, se reuniram para alugarem uma sala no centro da cidade, com o fito de atenderem a alunos particulares (...) Aí não só cumpríamos os nossos deveres profissionais, mas ainda nos reuníamos para trocar idéias sobre problemas do ensino, indagar das novas tendências da filosofia e da lingüística e, last but not least, perdermos em alguns dedos de amenidades e questões de momento. Foi então que se aproximou de nós um mestre que todos admirávamos e respeitávamos: José Oiticica. Veio trazer-nos a experiência do seu trabalho didático, de sua larga cultura, a vivência do seu amor ao estudo e aos estudantes. José Oiticica, numa época em que os estudos lingüísticos estavam engolfados nas águas do historicismo, volta-se, em bases mentalistas, para a investigação dos fatos da língua portuguesa, antecipando-se assim ao que viria a ser apanágio da lingüística moderna: a perspectiva sincrônica nos estudos da linguagem. Tome-se para exemplo o seu inovador Manual de Análise, infelizmente e injustamente esquecido em nossos cursos universitários. Para vaidade nossa, mestre Oiticica preparava nova edição desse seu livro e queria ouvir a voz crítica da nossa geração sobre o que fizera e o que seria passível de correção e aperfeiçoamento. Imagine-se o nosso desvanecimento por sermos assim contemplados por um dos mais autorizados catedráticos do tradicional baluarte da cultura humanística em nosso país, o Colégio Pedro II. Oiticica foi generoso conosco. Deixou estas palavras inscritas na "Advertência desta edição", que reproduzo da 5.ª ed. refundida: E apresso-me em consignar aqui meu profundo reconhecimento aos jovens professores Almir Câmara de Matos Peixoto, Antônio Houaiss, Sílvio Elia e Rocha Lima, por muitas preciosas sugestões, levando-me a emendas sérias, modificações de quadros e acuramento na disposição geral.2 A citação é de caso pensado longa pela importância de dados biográficos que encerra e por me ensejar partir daí para levantar alguns véus da trama de influências e afinidades que se podem estabelecer entre o nosso Houaiss e José Oiticica, restringindo-me, como anunciara antes, ao campo das atividades lingüístico-filológicas de ambos. Da confluência de características inatas de Antônio Houaiss com a possível participação da presença de Oiticica, aponto em primeiro lugar, como traço comum a ambos, a preocupação da sistematização dos fatos estudados. Oiticica era um sistematizador por excelência; suas análises em geral confluíam para quadros sinóticos ou esquemas. Daí é o próprio mestre do Pedro II que estabelece, neste sentido, sua relação com outro sistematizador nesses estudos de linguagem que foi Maximino Maciel, catedrático de Língua Portuguesa do Colégio Militar, autor de uma Gramática Descritiva, muito em voga no ensino entre 1887 a 1930, mais ou menos, depois caída injustamente no esquecimento e hoje objeto de teses de pós-graduação em nossas universidades, pelo que apresentava de intuições transformadas em lições da lingüística moderna. Nos prefácios e em notas de rodapé, entre outras oportunidades, José Oiticica ressalta essa contribuição de Maximino. Na última palestra de uma série proferida em São Paulo, na Rádio Cruzeiro do Sul, na década de 40, refere-se à contribuição do gramático sergipano e a importância da sistematização do desenvolvimento dos programas escolares e de sua aplicação na experiência pedagógica desenvolvida no Colégio Latino-Americano de propriedade de Oiticica, entre 1905 e 1908. Foi a característica de sistematização na vida e na obra de Antônio Houaiss que me fez considerar atrás uma síntese feliz dessa atividade o título do depoimento de Vasco Mariz: "Um processo administrativo-ideológico". Vale recordar que, na referência aos jovens professores que colaboraram na revisão do Manual de Análise, Oiticica alude a "modificações de quadros" e ao "acuramento na disposição geral", duas facetas de uma qualidade central que se chama "sistematização". O segundo elo entre Oiticica e Houaiss está no interesse da descrição do sistema fonético do português, especialmente do português do Brasil. José Oiticica, depois de trabalhar para uma tese de concurso ao Colégio Pedro II acerca da língua de Camões, apresenta à Congregação, em 1916, a 1.ª série de seu Estudos de Fonologia que, incontestavelmente, abre novo caminho nesse domínio da descrição lingüística entre nós. Houaiss sempre cultivou a preocupação da descrição fonética, tanto ligado ao Oiticica quanto a Nascentes - outro notável cultor dos estudos fonéticos -, e o ponto mais alto dessa atividade está consubstanciado na exaustiva elaboração da Tentativa de Descrição do Sistema Vocálico do Português Culto na Área Dita Carioca, em 1959 e das Normas da pronúncia normal do Brasil, aprovadas pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro, realizado em 1956, em Salvador (Bahia). Só um sistematizador empreende, como empreendeu Houaiss, o caminho para o dicionário, para a enciclopédia, para a crítica textual. Sem alusões pejorativas, tivemos, no campo da erudição dicionarística, quatro gigantes na seara: o Padre Augusto Magne, Antenor Nascentes, Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss. O sonhador entre eles, o Padre Magne, deixou-nos inacabados excelentes dicionários no âmbito do português e do latim; os sistematizadores, e disciplinados, os demais, chegaram com sucesso ao fim de seus projetos lexicográficos. Também Oiticica empreendeu a elaboração de um Novo Dicionário Popular da Língua Portuguesa Prosódico e Ortográfico que, apesar dos seus 16 fascículos, ficou incompleto, por falta de recursos para prossegui-lo. O trato com a língua e seu léxico está presente em Oiticica e em Houaiss, o que leva os dois a defender a necessidade da riqueza vocabular. As seguintes palavras são do velho mestre do Colégio Pedro II, mas Houaiss poderia subscrevê-las com prazer e com assentimento: O primeiro mister do escritor é apreender o sistema vocabular de sua língua. Tal apreensão há de fazer-se em dois sentidos: extensão e profundidade. Ora, o vocabulário das línguas civilizadas cresce todo dia, rapidamente em extensão, quase inteira, no setor técnico, industrial principalmente. Novas cousas, novos produtos; novas máquinas, novos nomes.3 Ou mais adiante: O estudo penetrante do vocabulário nos dois sentidos apontados capacita o escritor de exprimir tudo com a máxima propriedade. Potência vocabular e riqueza de dicção constituem os dois tesouros essenciais do escritor. Foi esse o alforje de um Camilo Castelo Branco, singular milagre literário.4 Dos grandes mestres do idioma com quem Houaiss conviveu como aluno e discípulo - Oiticica, Sousa da Silveira e Antenor Nascentes - só o primeiro possuía esse desvanecimento pela riqueza vocabular, como também o praticava nos seus escritos, em prosa ou poesia. Oiticica debruçou-se nos escritores de léxico pujante, fichando seu arsenal vocabular, como, segundo suas declarações, fez de autores portugueses (Camilo e Aquilino Ribeiro) e brasileiros (Rui, Euclides e Coelho Neto). Defende este último de maneira veemente: «Houve quem acoimasse Coelho Neto de maníaco nesse ponto, glosando-se que inventava as histórias para empregar certos vocábulos. Não me parece real a coima. O que reconheço é serem seus vocábulos empregados com perfeita precisão».5 Léxico extenso e profundo não se há de confundir com exuberância desenfreada, catadupa lexical que camba para a verborragia. Oiticica condena-o, ainda que venha sob a chancela de um bom autor: Finalmente, há também, o vocabulário destrambelhado, sem regra nem medida, felizmente raro ou ímpar. É o de Fialho de Almeida. Nem sua centelha inconfundível logrou salvá-lo.6 Outra estreita afinidade entre essas duas inteligências - Houaiss e Oiticica ou Oiticica e Houaiss - é o respeito à língua padrão, à norma culta, apanágio da Cultura, que, longe de ser entendida como antiliberal e aprofundadora das diferenças sociais, é tida como um ponto ideal a ser atingido pela ação da escola e das diversas agências de cultura de que dispõe a sociedade. Ambos eram devotos da disciplina gramatical. Tal orientação coincide com a de um dos maiores teóricos da linguagem dos nossos dias. Eugenio Coseriu, em resumo de uma conferência no Liceu Literário Português, assim se manifesta: Na lingüística atual considera-se com freqüência só a língua falada 'primária' (espontânea ou 'usual') como 'natural' e 'livre', ao mesmo tempo que a língua exemplar (ou 'língua padrão') e a forma literária desta se consideram como 'artificiais' e 'impostas'. Por conseguinte, consideram-se também só a gramática descritiva 'objetivista' como realmente científica e a gramática normativa como expressão sem fundamento científico duma atitude antiliberal e dogmática. Trata de erros e confusões teóricas que procedem da concepção positivista vulgar da linguagem e da Lingüística. Na realidade e, portanto, na boa teoria, a língua literária representa o grau mais alto da dimensão deôntica (o 'dever ser') da língua; e a gramática normativa é a manifestação metalingüística explícita desta dimensão.7 Sem compará-lo a Oiticica, Sílvio Elia, no seu estudo sobre Houaiss, chamou-nos a atenção para este aspecto do pensamento lingüístico-pedagógico-político do nosso homenageado. Como Oiticica, Houaiss não perfilhou a tese populista para quem, no dizer de Sílvio, "a língua errada do povo" era a forma autêntica da fala brasileira. Nisto, Oiticica enquanto anarquista, e Houaiss enquanto socialista, tocam numa e mesma tecla. Como bem resumiu Sílvio Elia, «Pode, por conseguinte, o homem, ser racional e livre que é, melhorar, aperfeiçoar o seu comportamento por um processo chamado "educação" (...) A escola, no que tange ao ensino da língua portuguesa, ministrará, portanto, ao aluno os conhecimentos necessários para o domínio satisfatório do padrão culto do idioma pátrio».8 Neste particular, Oiticica, tão fiel à sua noção de ordem e de perfeição idiomática, não aceitou os "futuristas". Houaiss, mais jovem e mais bem aparelhado para receber as mudanças, soube melhor compreender o modernismo e futurismo, sem renegar - como fizera Oiticica - seu partidarismo de uma sociedade baseada na ordem, no belo, na estética. Também Houaiss se aproximava das atividades de Oiticica no que toca a uma permanente e intensa atuação como crítico literário, labor que não praticavam, com regularidade, Nascentes nem Sousa da Silveira. Curioso é que até neste domínio Houaiss se aproxima de Oiticica, pois que a crítica literária entre eles assinala o domínio de menor relevo e importância de suas atividades. Eis aqui uma pálida amostra do que se pode fazer de análise microscópica na obra lingüístico-filológica de Antônio Houaiss, nas suas aproximações com seus mestres e contemporâneos. A Houaiss se podem bem aplicar as palavras com que Oiticica se definia a si mesmo, no seu último livro de sonetos Fonte Perene (1954): sou da raça pagã dos Prometeus... guardo em mim as grandezas do indescrito, e a vontade divina de ser Deus.